quinta-feira, 6 de outubro de 2022

Poema sem titulo (Caio F)

 

Eu quero a vida.
Com todo o riscos
eu quero a vida.
Com os dentes em mau estado
eu quero a vida
insone, no terceiro comprimido para dormir
no terceiro maço de cigarro
depois do quarto suicídio
depois de todas as perdas
durante a calvície incipiente
dentro da grande gaiola do país
de pequena gaiola do meu corpo
eu quero a vida
eu quero porque quero a vida.
É uma escolha. Sozinho ou acompanhado, eu quero, meu
deus, como eu quero, com uma tal ferocidade, com uma tal
certeza. É agora. 
É pra já. Não importa depois. 
É como a quero.
Viajar, subir, ver. Depois, talvez Tramandaí. 
Escrever. Traduzir. Em solidão. 
Mas é o que quero. Meu Deus, a vida, a vida, a vida.
A VIDA
À VIDA

Ferver 77º



Deixa-me entrelaçar margaridas
nos cabelos de teu peito.
Deixa-me singrar teus mares
mais remotos
com minha língua em brasa.
Quero um amor 
de suor e carne
agora:
enquanto tenho sangue.
Mas deixa-me sangrar teus lábios
com a adaga de meus dentes.
Deixa-me dilacerar teu flanco
mais esquivo
na lâmina de minha unhas.
Quero um amor 
de faca e grito
agora:
enquanto tenho febre.
O poema acima é dos mais belos exemplares 
da poesia erótica de Caio Fernando Abreu. 
Composto em 14 de janeiro de 1975, 
vemos uma lírica explícita, 
que desafia o leitor ao expor 
os desejos do eu-lírico com uma crueza ímpar.




Caio escreveu os versos acima em pleno contexto da ditadura militar.
O poema, datado de 2 e 3 de maio de 1979,
desafiava na altura o status quo durante os anos de chumbo
ao ousar falar de liberdade.